A casa dos meus avós
Viveremos até ao final dos tempos a procurar episódios para repetirmos na nossa tela mental.
Às vezes gostava de poder só voltar à entrada da casa dos meus avós naquelas manhãs de verão. Dois baldes, duas facas, dois sacos de feijão verde.
A simplicidade ocupa-nos quando somos pequenos. Hoje por muito tempo que ocupe não consigo ter de volta esse momento.
O verão deixou de ser o verão para ser um inverno quente e de agenda atribulada. Para um inverno de mergulhos e sabor salgado. Não é melancolia, acho. Apenas queria voltar à entrada da casa dos meus avós, ser pequeno. A bata da minha avó que tinha tudo no bolso mágico, as mãos mascarradas do meu avô que me abraçavam depois de uma manhã no atelier-oficina que hoje é casa. Hoje não me deslumbra como deslumbrava na altura quando ficava especado nas aduelas e ele me dizia:
-não entres aqui que isto não é para rapazes pequenos
E eu ali desejoso e irrequieto para me aventurar-com um olhar atento nas mãos calejadas do meu velho- entre pregos e parafusos, rebarbadoras, cavaletes, diluente celuloso, latas de tinta amontoadas, formões e chaves de mil e uma espécie. Chave-estrela, chave Philips que até hoje não devo saber distinguir uma da outra.Uma vergonha eu sei.
Hoje ocupa-me o silêncio de chegar a casa e estar desesperado para falar com o Duarte, de quem herdei muitos defeitos e qualidades e de quem carregarei até ao final dos meus dias o nome, e com a Maria. No outro dia disseram-me que nesses momentos estão em casa à minha espera quando penso em contar-lhes algo e me deparo com esse vazio de já não os ter por perto para conversarmos até dos mais básicos e corriqueiros assuntos dos dias que vou tendo pela frente.
Eram muito diferentes. A minha avó nunca precisou de me dizer nada, os olhos falavam por ela quando eu fazia alguma asneira que não devia. Levei algumas bofetadas com o olhar dela porque sei que dava muita dor de cabeça.
Dos netos todos eu era capaz de ser o mais espevitado.
O sentido de humor e a perspicácia para fazer piadas quando eu não estava para aí virado era fenomenal. Quando fazia birras e colocava cerejas nos lóbulos das orelhas como se fossem brincos para me fazer rir.
No adeus ao meu avô, que não estive presente, lembro-me da minha mãe me dizer que um dos seus amigos discursou referindo que ele preservava em si o provérbio de que a palavra é de prata e o silêncio é de ouro.
Até hoje me ficou essa observação meticulosa. Conservava um sorriso sempre, era uma pessoa que valorizava o silêncio para não se perder nas palavras e não desvalorizar as conversas que tinha. Apesar de dele ter ouvido das melhores histórias e episódios.
(Hoje em dia tento não falar demasiado para não me ouvir tanto. Saber estar calado é uma arte.)
Isto por mais que ocupe o meu tempo e pensamento agora não volta porque estou ocupado à procura de algo que substitua esse sentimento e esses episódios.
É triste, desaba sobre os meus pés como duna da praia que cai com o rechaçar da água.
As palavras atrapalham-se, enrolam-se, afogam-se para dizer uma só expressão que tenho receio dizer, arrisco: saudades. Arrisco saudades porque temos de viver em frente, viver além, viver e deixar atrás o que atrás foi gravado, escrito, projetado. Este inverno é quente dentro de mim e mergulho em busca de uma água que me refresque e traga memória de algo que possa ser melhor. Que seja assim ou que assim seja, lixe-se.