Vazios ocupados
Memórias e tentativas de passar tempo
Dá para notar, mesmo sem querer, que o inverno já começou a infiltrar-se. Ainda não chegou, mas sente-se no ar. Amanhece mais tarde, anoitece mais cedo. As esplanadas parecem já não querer saber de ninguém, com as cadeiras empilhadas e os toldos a rangerem ao vento. As ruas, antes cheias de pressa e conversas, agora soam a intervalo, como se o mundo tivesse ido tomar um café e ainda não tivesse regressado.
Caminho pelo Bairro do Liceu. Sempre gostei deste bairro, talvez porque me lembra um tempo em que tudo parecia possível, em que as noites tinham um brilho que hoje só se vê nos olhos de quem ainda acredita em qualquer coisa. Os espaços vazios ocupam-me quando passo por estas avenidas longas da cidade. Há um sossego quase cúmplice nas luzes amarelas dos candeeiros e no som das folhas a rolar no chão.
Ao longe, os estafetas disputam as ruas nas suas vespas, rápidos, com as luzes a piscarem como fogachos. Atravessam os cruzamentos como se pudessem enganar o tempo, como se cada entrega fosse uma fuga ao frio que desce devagar.
Passo pelo Liceu, iluminado por dentro, e penso nas histórias que aqueles corredores guardam. Corredores longos, polidos, que já ouviram confissões sussurradas e promessas que o tempo desfez. Lembro-me de quando esperava à porta, peito feito, à saída das aulas, à espera de quem me fazia perder a voz. Nervoso, adolescente, sem saber ainda o que era o medo de perder.
Hoje, muitos anos depois, caminho ali como se visitasse uma antiga fotografia. O passado é um lugar a que regressamos sem dar por isso.
O destino é o cinema, como quase todas as sextas. Hoje passam Lavagante, realizado por Mário Barroso, adaptação do livro do grandioso José Cardoso Pires, centenário por estes dias. Gosto de pensar que ele, Cardoso Pires, ainda observa os seus personagens à distância, com um pé no cigarro, outro na ironia.
Houve qualquer coisa no filme que me fez lembrar Godard e Truffaut, talvez a mesma nostalgia de quem acreditou que o mundo podia mudar através da arte, e ficou para ver que não.
A sala está quase vazia. O som da película, o chiar dos assentos, o respirar das poucas pessoas presentes. Tudo isso me embala. O cinema é o único lugar onde me sinto sozinho sem estar realmente só. As luzes apagam-se e, por um instante, o mundo parece fazer sentido.
Durante o filme, penso nas vidas que passam ao meu lado e não vejo. Nos gestos pequenos, nos silêncios, nas palavras que ficam a meio. O ecrã mostra gente que tenta ser feliz, como todos nós, mas falha com uma elegância que dói. Talvez seja isso que nos aproxima.
Quando o filme acaba e os créditos correm, fico mais um pouco, a ver os nomes que não conheço e que, no entanto, fizeram parte de algo que me tocou. Há beleza naquilo que não fica connosco, mas nos acompanha.
Lá fora, o frio aperta. As ruas estão quase desertas, o vento traz o cheiro a sopa das casas e a maresia que nunca abandona esta cidade. Penso que o inverno não é uma estação, é um estado de espírito. E que, talvez, o segredo esteja em aprender a gostar das coisas que se perdem lentamente.
Volto a casa devagar. O casaco apertado, as mãos outra vez nos bolsos. A noite é clara o suficiente para me ver por dentro.

